São mais de quatro décadas de dance music nacional até a atualidade do que hoje chamamos de “cena”. 40 anos de um nicho bem específico que ganhou adeptos das mais variadas gerações e consequentemente, práticas e conceitos que, quarenta anos depois do início, parecem ser quase um sinônimo do ambiente da música eletrônica. Se você é um desses adeptos, certamente alguns desses conceitos e práticas são velhos conhecidos seu, mas aqui nesse editorial de hoje, queremos trazer uma ótica questionadora sobre alguns deles. Então vamos?
Como eu disse anteriormente, é uma cena que se construiu ao longo de 40 anos, ganhou ramificações e claro, direções diferentes dentro de um mesmo nicho — sim, cá estamos novamente falando sobre os famigerados “mainstream” e “underground”. Mas não se engane, os conceitos e práticas que estamos prestes a questionar nesse texto percorrem a música eletrônica nacional de forma horizontal, não só em seu lado mais popular. É normal que conforme o nosso amadurecimento e até desconstrução de conceitos engessados, ações e conceitos comecem a serem questionados ao ponto de identificarmos problemáticas o suficiente para que tenham suas forças esvaziadas.
Mas afinal de contas, quais são elas? Obviamente não vamos abordar todas as práticas incoerentes que existem, essa nem é a nossa pretensão nesse editorial. Aqui vamos abordar alguns conceitos enraizados no contexto clubber e que são largamente praticados — mesmo com as mais diversas informações por aí —, assim como também não é sobre discorrer sobre problemáticas que já foram e são levantadas, como a desigualdade de gêneros em lineups. Mas falando em misoginia, podemos começar por ela. Não é incomum encontrar eventos, festas, mas principalmente clubs que ainda baseiam seus preços de acordo com gênero e cobrando menos para mulheres.
Em um papo sem curvas, não existe outra justificativa para essa prática a não ser o uso de mulheres como “isca” para homens — se você, mulher, ainda frequenta um ambiente que tem essa prática de precificação é válido questionar-se se esse é um ambiente seguro para você, mas acho que a resposta nós já sabemos. Esse tipo de prática não é só misógina e hostil às mulheres, como também revela os valores de quem está por trás da marca. Portanto, questionar-se não só é fundamental, mas também se é esse o tipo de ambiente que você se sente segura em frequentar.
No mesmo fio do foco absoluto no lucro, uma das práticas mais horizontais e mais institucionalizadas possíveis é o incentivo ao consumo desenfreado de álcool. A venda de combos de bebidas alcóolicas é, sem dúvidas, uma das maiores fontes de lucro de festas; mas na contramão, ao invés de buscar um equilíbrio e incentivar também o consumo de água, as águas são vendidas por valores superfaturados e obviamente o consumidor será induzido a dar preferência para gastar seu dinheiro com álcool. Sem falsa modéstia, o uso de drogas é uma prática intrínseca à música eletrônica e superfaturar a água, é, no mínimo, atestar uma política nula de redução de danos.
Redução de danos, prática essa que, inclusive, parece não conseguir furar a bolha dos clubs. O superfaturamento de água para incentivo ao consumo de álcool é, literalmente, só a ponta do iceberg. A falta de preparação para lidar com a problemática da venda e do consumo de drogas segue a mesma política enxugadora de gelo, o que, em um contexto clubber, é bem perigoso — assim como a falta de profissionais preparados para lidar com os usuários que passam por alguma situação de excedência. Novamente, sem falso moralismo, fazer-se de cego não muda a situação, apenas a torna mais suscetível à agravação que, com o devido preparo e/ou prática redutora de dano, poderiam ser rapidamente controlada.
Mas voltando ao assunto álcool, a venda dos famosos combos de garrafa são acompanhados por outra problemática: a das mesinhas que ocupam a pista de dança. E aí sejamos sinceros, né? Se a pista é de dança, é muito chato você ir dançar e ter que se preocupar se você vai esbarrar no “bistrôzinho”. Ou quando a pista está lotada e lá está a mesa cercada por pessoas que, às vezes, nem dançando estão — nada contra os introspectivos, mas se você está só bebendo e não está ali pelo som, isso pode ser feito em outro lugar. Acredito que tudo tenha seu lugar, mas a pista de dança definitivamente deveria ser melhor aproveitada [risos].
E falando em pista de dança… existe uma prática lamentável que permeia esse lugar mágico chamado dancefloor que não vai passar batida deste editorial: as segregações. Sim, segregação. Quando uma pista de dança é seccionada por valores e um “funil” é feito, principalmente quando o front é vendido pelo valor mais caro, é difícil argumentar que uma segregação não é feita quando espaços são divididos por quem pode pagar mais. Não é novidade nenhuma que diante da imensa crise inflacionária que o Brasil atravessa, o entretenimento naturalmente está cada vez mais distante da acessibilidade horizontal. Que me perdoe quem discorda, mas se você gosta e realmente aprecia a música eletrônica, você sabe que o seu lugar é a pista.
Por fim, mas não menos importante, uma outra prática controversa é a elaboração de lineups que se baseiam em oportunidades e não no melhor fit sonoro. É claro que é necessário dar oportunidades para novos talentos, mas nem sempre incluir esse talento onde ele não pode ser apreciado pode ser (e na maioria das vezes é) uma furada. O warm up é um momento crucial para o desenrolar da noite, como Ágatha Prado já argumentou em um de nossos editoriais, e usando as palavras dela: “um bom warm-up é como uma boa preliminar, que antecede o momento orgástico do prazer”. Portanto, para uma noite memorável, um warm up cauteloso precisa ser montado cuidadosamente.
+++ Relembre o editorial sobre o papel do warm up para o desenrolar da noite
E aí, é importante questionar quantos desses conceitos são contrários ao que é a música eletrônica na essência. Uma coisa é evoluir, outra completamente diferente é se distanciar. Para vivermos a música eletrônica na máxima, olhar pra trás e sentir que não nos isolamos da essência dela é fundamental. Por isso, a atenção constantemente crítica faz-se cada vez mais necessária não só para a manutenção, mas também para garantia de que a música eletrônica permaneça (ou volte) a ser o que ela é (ou deveria ser): um lugar onde o status, segregação e o ego não são maiores que a música e a liberdade de sentir seus efeitos sobre nós.
A música conecta.