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A música conecta

Eduard toca Terre Thaemlitz

Por Eduard Marquardt em Eduard toca... 04.09.2020

Terre Thaemlitz é talvez o mais polêmico produtor do cenário artístico da música – e “não música” – eletrônica. Ativo desde o fim dos anos 80, produziu com seu nome e sob diversos pseudônimos. Seu primeiro release data de 1993. 

Terre Thaemlitz aka DJ Sprinkles aka Chugga aka G.R.R.L. aka Kami-Sakunobe House Explosion K-S.H.E aka Social Material aka Teriko aka Terre's Neu Wuss Fusion etc. 

Nascido em Minnesota, em 1968, cresceu em Springfield, Missouri. Seu vínculo com a música eletrônica se dá por antítese ao cenário opressivo do Rock na época. Mudou-se para Nova York em 1986 para estudar na Cooper Union School of Art, formando-se em Belas Artes em 1990. A nota biográfica em seu próprio site, o Comatonse, diz que “durante seus estudos, Thaemlitz ficou desiludido com a política de exclusão da indústria das artes visuais e começou a se concentrar em questões de teoria cultural e política de identidade. Em volta das subculturas musicais do Lower East Side de Manhattan, o interesse de longa data de Thaemlitz pela música eletrônica rapidamente conduziu-o a se tornar DJ em eventos ativistas sob o nome DJ Sprinkles. Em 1991, assumiu como DJ residente do club Sally’s II, onde se apresentou três noites por semana com a lenda transgênero Dorian Corey e outros.”

Posições e procedimentos

A breve nota acima permite observar fatores relevantes da postura de Thaemlitz. São várias entrevistas online que valem a pena ver (Red Bull Music Academy, Dubspot! Wireless Interview, etc.). Nelas, Terre explica que começou a tocar como DJ Sprinkles (o nome mais “pussy” que conseguiu encontrar num contexto marcado por nomes emblemáticos) em um cenário “diva music” (Lisa Stansfield etc.), porém tocando House e Deep House. “Ninguém estava tocando isso que eu estava pesquisando. Mas estavam fazendo, então…”. Seu vínculo acadêmico com as artes plásticas ampara um discurso teórico do início até suas produções mais recentes – ou seja, há um olhar distanciado e crítico sobre tudo o que Terre faz. Isso permite entender, por exemplo, por que ele não toca apenas House, por que Terre passa de uma atmosfera ambiente, ainda melódica, a uma produção não musical que considera o ruído e o meio elementos de composição. 

A produção mais emblemática é certamente seu álbum Soulnessless (Comatonse Recordings, C.020), de maio de 2012, considerado o mais longo álbum da história da música: dividido em cinco títulos e mais seis bônus tracks, utiliza como mídia um cartão micro SDHC de 16gb em formato MP3 e textos em PDF, em 10 línguas. Quatro das faixas têm em média 20 minutos de duração e uma delas, Meditation On Wage Labor And The Death Of The Album, tem exatamente 29 horas, 40 minutos e 31 segundos. É isso mesmo.

Mas por quê?

Porque em um século de indústria as mídias para encapsulamento de música acabaram por adestrar a produção. Primeiro o disco de vinil, com em média 36 minutos de audição com qualidade, para que a agulha consiga ler os sulcos adequadamente; o cassete, por consequência, repete a duração do disco, raramente incluindo materiais bônus, dada a possibilidade de extensão até 120 minutos (e muito mais raro, 180 minutos, que representa uma cinta magnética extremamente fina, frágil, e o máximo tamanho possível dentro do receptáculo plástico); e depois o CD, com duração entre 74 e 80 minutos. Nesse sentido, a produção de música Pop adestrou-se facilmente aos formatos disponíveis e às regras da indústria e da rádio. Um hit não deve passar de cinco minutos, o que em si já é uma longa duração. Um disco não deve conter mais que 10 títulos. Um encarte não deve passar de duas páginas, e assim por diante. Tendo isso em vista, Meditation On Wage Labor And The Death Of The Album parte da ideia de que o formato MP3 acabou com a noção de obra, de álbum, de duração necessária. Se a ideia de produção artística significa preencher uma mídia, por que não preencher também uma mídia como um cartão SD de 16gb até o seu limite?

Esse gesto significa sabotar uma estrutura a partir de dentro. Produzir uma peça cuja execução em larga escala seja impossível. Por outro lado, o artista, conforme as mídias mudam, é forçado a entregar mais sem que isso represente uma contrapartida financeira equivalente pelo trabalho. Uma peça como Meditation… então exacerba qualquer limite de produção e labor. Trata-se, portanto, de produzir um objeto musical cujo “valor” resida principalmente no efeito que ele gera no campo das ideias – e não no objeto em si. Ecos de Marcel Duchamp, que lembram uma definição de arte que data do início do século XX, encampada pelo formalismo russo, conhecida como Ostranenie, ou seja, estranhamento ou desfamiliarização. A grosso modo, essa concepção entende que a arte está necessariamente ligada àquilo que nos causa estranheza, que de algum modo nos violenta – ou seja, violenta a noção que sustentamos daquilo que é belo, agradável, inteligível, como se fosse algo imutável, e das separações e taxionomias que fazemos, inclusive sobre as noções de gênero.

Dentre os releases mais recentes, Deproduction inclui dois títulos, Names Have Been Changed (Sound/Reading for Incest Porn) e Admit It’s Killing You (And Leave) (Sound/Reading for Gay Porn), ambas as faixas com 42 minutos e 50 segundos de duração, e de cunho crítico social já presentes no álbum Soil, de 1995 – que ao fim apresenta um relato feminino de abuso familiar repleto de pavor I looked up and Richie was standing with a gun. O enredo de Deproduction é contextualizado em uma resenha do Resident Advisor, de Angus Finlayson: “Em 2011, enquanto o debate sobre o casamento entre pessoas do mesmo sexo agitava os EUA, descobriu-se que a rede de fast food Chick-fil-A estava doando milhões de dólares para organizações anti-LGBTQ. Como defesa, o presidente da empresa, Dan Cathy, disse: ‘Apoiamos muito a família – a definição bíblica de unidade familiar. […] Queremos fazer tudo o que pudermos para fortalecer as famílias.’ Ativistas e estudantes universitários pediram um boicote ao restaurante; ao mesmo tempo, o ex-governador republicano Mike Huckabee anunciou um ‘Dia de Degustação Chick-fil-A”, que viu os apoiadores aumentarem as vendas do restaurante em cerca de 30%. O comediante Paul F. Tompkins fez uma peça sobre o assunto, zombando dos comentários de Cathy: ‘[Chick-fil-A are] apparently very anti-gay. Excuse me: they’re very pro-traditional family. Which is under attack by gay people just being around. Like, just the idea of them is corrupting families, where they’re like, ‘Wait, there’s another way!?’ And then [the] families break apart.’ A passagem aparece em ‘Admit It’s Killing You (And Leave)’, de modo abafado e desacelerado, e as linhas de Tompkins derivam por uma paisagem impressionista entre piano e eletrônica.”

House music 

Na introdução do álbum Midtown 120 Blues, lançado pela Mule Musiq em janeiro de 2009, no Japão, e considerado o “disco do ano” pelo Resident Advisor, Thaemlitz afirma que “House é menos uma sonoridade e mais uma situação”. O monólogo da introdução segue e nele ouvimos: “Deve haver uma centena de discos com voice-overs perguntando: ‘O que é house?’ A resposta é sempre alguma bobagem de cartão postal sobre ‘vida, amor, felicidade…’”. Vale a pena ler o argumento inteiro, que é o seguinte:

“A House Nation gosta de achar que os clubs são oásis de sofrimento, mas o sofrimento está aqui, em nós. (Se você conseguir entrar, é claro. Uma vez, em Nova York, quando não me deixaram entrar no Loft, pude ouvir que estavam tocando um dos meus discos na pista naquele exato momento. Sem brincadeira.)

Vejamos as coisas de que você está tentando fugir ou não percebe neste momento. Afinal, é esse contexto maior que criou o movimento House e trouxe você aqui. House não é universal. House é hiperespecífico: East Jersey, Loisaida, West Village, Brooklyn – são lugares que evocam batidas e sons específicos. Quanto aos sons das pistas de Nova York, os clássicos da House de hoje podem ter entrado em um set eventualmente, mas a maioria das músicas em qualquer club é um shit vocal dos maiores labels. E não me interessa o que disseram a você. Além disso, o Deep House de Nova York pode ter começado como Minimal, instrumentais de ritmo intermediário, mas quando as distribuidoras começaram a exigir faixas vocais de venda fácil, até o selo ‘Strictly Rhythm’ traiu a promessa de seu próprio nome, lançando estritamente vocal atrás de vocal. A maioria dos europeus ainda pensa que ‘Deep House’ significa um shit vocal enérgico.

Então, qual era a sonoridade da House de Nova York? House não era tanto uma sonoridade, era mais uma situação. A maioria dos DJs – como eu – estava onde não havia ninguém, em nenhum club: sem audiência e sem grana. Nas palavras de Sylvester: a realidade era menos ‘todo mundo é uma estrela’ e mais ‘eu que não tenho nada’.

Vinte anos depois, uma grande distribuidora anuncia a Classic House da mesma forma que as trilhas sonoras dos filmes da Guerra do Vietnã nos deram o Classic Rock. Os contextos em que o som do Deep House emergiu são esquecidos: crises sexuais e de gênero, trabalho sexual transgênero, hormônios do mercado negro, dependência de drogas e álcool, solidão, racismo, HIV, problemas, Thompkins Sq. Park, brutalidade policial, insultos, pagamento indevido, desemprego e censura – tudo a 120 batimentos por minuto.

Estes são os Midtown 120 Blues.”

Capa do disco Midtown 120 Blues

O mix

Bem, minha vontade é escrever por horas sobre o homenageado da vez, mas parece que ainda assim o resultado seria superficial diante do grande esforço intelectual que Terre Thaemlitz tem realizado nos últimos quase 30 anos. Investigar a sua discografia é um privilégio e, sem dúvida, muito instigante.

Meu primeiro contato com a sua música foi em um remix para a track Low Point On High Ground (DJ Sprinkles Rock Bottom Mix), do Adultnapper – que, na verdade, é Francis Harris. Depois disso fui repetidamente surpreendido pela amplitude, pluralidade e profundidade com que Terre Thaemlitz trabalha, relacionando produção musical, produção acadêmica, crítica e criatividade. Por essa razão, este não é um set só de House, e talvez seja o set mais complexo que já consegui elaborar, em vários momentos com até quatro camadas sonoras sobrepostas. A tracklist completa segue abaixo. 

O mix tenta passear por grande parte dos releases de Thaemlitz, como os álbuns Midtown 120 Blues, Soulnessless, Soil, Tranquilizer, Deproduction; diversos singles, como Companion, realizado em parceria com Frank & Tony (Francis Harris e Anthony Collins), Motorik Life, em versão remix para Hardrock Striker, manager da Skylax Records; alguns dos remixes feitos para Will Long, lançados pela Comatonse em anos mais recentes, e também fragmentos das séries Deeperama e Rubato, dedicada a versões em piano das composições de Kraftwerk, Gary Numan e Devo. Chamo atenção para The Dream Will Carry Me e Soon I Will Be Free, do single Selling (Bottrop-Boy, 2000), tracks baseadas em colagens sonoras e vocais reversos de algum sucesso Pop que todos já ouvimos – se não a original, milhares de outras parecidas.

Boa audição e até o próximo episódio.

Tracklist:

1. DJ Sprinkles ‎– Midtown 120 Intro [Midtown 120 Blues; Mule Musiq, 2009]
2. DJ Sprinkles – Untitled  [Deeperama Module Party #9; Comatonse Recordings, 2004] 
3. Terre Thaemlitz – Raw Through A Straw [Tranquilizer; Instinct Ambient, 1994]
4. Terre Thaemlitz – Meditation On Wage Labor And The Death Of The Album (Sprinkles’ Unpaid Overtime) [Soulnessless; Comatonse Recordings, 2012]
5. DJ Sprinkles ‎– Reverse Rotation [Midtown 120 Blues; Mule Musiq, 2009]
6. Terre Thaemlitz – Cry The Clock Said [Replicas Rubato; Mille Plateaux, 1999] 
7. Terre Thaemlitz – F/S (Fragment) [Coutoure Cosmetique; Caipirinha Productions, 1997]
8. DJ Sprinkles – Sisters, I Don’t Know What This World Is Coming To [Sisters, I Don’t Know What This World Is Coming To; Mule Musiq, 2008]
9. Terre Thaemlitz – Canto IV: Two Letters [Soulnessless; Comatonse Recordings, 2012]
10. Adultnapper feat. Big Bully – Low Point On High Ground (DJ Sprinkles Rock Bottom Mix) [Low Point On High Ground; Simple Records, 2010]
11. DJ Sprinkles – Grand Central, Pt. II (72 Hrs. by Rail From Missouri) [Midtown 120 Blues; Mule Musiq, 2009]
12. Terre’s Neu Wuss Fusion – Thirty Shades Of Grey [You? Again?; Mule Electronic Distribution, 2006]
13. Terre Thaemlitz – Trucker [Soil; Instinct Ambient, 1995]
14. DJ Sprinkles – Brenda’s 20$ Dilemma [Midtown 120 Blues; Mule Musiq, 2009]
15. Chugga – Theme For The Buck Rogers Light Rope Dance (Deep Space Probe Remix By Terre Thaemlitz) [You? Again?; Mule Electronic Distribution, 2006]
16. Frank & Tony With DJ Sprinkles – Companion [You; Scissor and Thread, 2014]
17. Terre Thaemlitz – Names Have Been Changed Names Have Been Changed (Sprinkles’ House Arrest) [Deproduction EP1; Comatonse Recordings, 2018]
18. Terre Thaemlitz – Admit It’s Killing You (And Leave) (Sprinkles’ Dead End) [Deproduction EP2; Comatonse Recordings, 2018]
19. DJ Sprinkles – House Music Is Controllable Desire You Can Own [Sisters, I Don’t Know What This World Is Coming To; Mule Musiq, 2008]
20. Terre Thaemlitz – Liberation Model [Love For Sale – Taking Stock In Our Pride; Mille Plateaux, 1999]
21. Terre Thaemlitz – Morgen Spaziergang [Die Roboter Rubato; Mille Plateaux, 1999]
22. Terre Thaemlitz – Fat Chair [Tranquilizer; Instinct Ambient, 1994]
23. Nina Simone – See-Line Woman (Terre Thaemlitz Edit) [Deeperama Module Party #9; Comatonse Recordings, 2004] 
24. Hardrock Striker – Motorik Life (DJ Sprinkles’ Mountain Of Despair) [Motorik Life; Skylax, 2011]
25. Kami-Sakunobe House Explosion K-S.H.E ‎– Head (In My Private Lounge, My Pad) [Routes Not Roots; Comatonse Recordings, 2006]
26. Terre Thaemlitz – Rosary Novena for Gender Transitioning (Spirits, Lose Your Hold) (K-S.H.E Remix) [Soulnessless; Comatonse Recordings, 2012]
27. Terre Thaemlitz – Elevatorium [Soil; Instinct Ambient, 1995]
28. Area – Bourbon Skies (St. Petersburg Three-Four Blues) [Bourbon Skies; Arma, 2013)
29. Will Long – Get In and Stay In (Sprinkles Overdub) [Mint/Clay; Comatonse Recordings, 2016]
30. Will Long – Pigs (Sprinkles Overdub) [Yellow/Ivory/Rust; Comatonse Recordings, 2016]
31. Terre Thaemlitz – Agnostiko Sa Dabaw (Agnostic Of Davao) [Soulnessless; Comatonse Recordings, 2012]
32. Will Long – Chumps (Sprinkles Overdub) [Purple/Blue; Comatonse Recordings, 2016]
33. Terre Thaemlitz – Admit It’s Killing You (And Leave) (Piano Solo) [Deproduction EP2; Comatonse Recordings, 2018]
34. Will Long – That’s What They Understand (Sprinkles Overdub) [Yellow/Ivory/Rust; Comatonse Recordings, 2016]
35. Chugga – Theme For The Buck Rogers Light Rope Dance (500 Year Orbit Remix By Terre Thaemlitz) [You? Again?; Mule Electronic Distribution, 2006]
36. Terre & Funk Shui – Superbonus (Superedit) [You? Again?; Mule Electronic Distribution, 2006]
37. Bill Laswell & Terre Thaemlitz – Open URL [WEB, Subharmonic, 1995] 
38. Terre Thaemlitz & Jane Dowe – DTD [Institutional Collaborative; Mille Plateaux, 1998]
39. Terre Thaemlitz – The Dream Will Carry Me [Selling; Bottrop-Boy, 2000] 
40. Terre Thaemlitz – Soon I Will Be Free [Selling; Bottrop-Boy, 2000]
41. Terre Thaemlitz – A-Program [A-Musik Presents A Program Of… A-Muzak; A-Musik, 1999]
42. Terre Loves Robin – Terre Loves Robin [Ben Loves Terre Loves Robin; Premature Recordings, 2018]
43. Terre Thaemlitz – Canto V: Meditation On Wage Labor And The Death Of The Album [Soulnessless; Comatonse Recordings, 2012]
44. Terre Thaemlitz – Cycles [Soil; Instinct Ambient, 1995]
45. Francis Harris – Dangerdream (How Che Guevera’s Death And Bob Dylan’s Life Militarized Brigate Rosse) (Vinyl Edit) (Terre Thaemlitz Remix) [Minutes of Sleep; Scissor and Thread, 2014]
46. Primula – Nobody’s In This Classroom (Nobody Mix by Terre Thaemlitz) [Enjoy The Silence Vol.3, Mule Musiq, 2014]

Eduard é DJ e professor universitário. Residente do núcleo TROOP desde 2014. Owner da The_Smoking_Cat K7Studio.

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