Skip to content
A música conecta

Jeff Mills: sinos e reverências

Por Isabela Junqueira em Storytelling 01.08.2024

Muito mais que um pioneiro, Jeff Mills é uma força gravitacional que puxa a dance music para novas órbitas. Nas suas mãos, os sintetizadores se transformam em ferramentas de exploração, mapeando territórios sonoros desconhecidos e consequentemente, desafiando o tempo e os padrões com a sua música. Com uma visão artística que transcende a pista de dança, Mills tece narrativas que são ao mesmo tempo profundamente humanas e cósmicas, se tornando uma verdadeira lenda viva que molda o futuro da música eletrônica há ao menos 35 anos, sendo um dos poucos e grandes artistas que esculpiu o techno em uma forma de arte que hoje em dia é globalmente reconhecida. E diga-se de passagem é um desafio e tanto escrever sobre Jeff Mills contemplado toda a sua grandeza artística, mas vamos lá… 

Nascido em Detroit, em 1963, Mills começou a carreira na música ainda jovem em meados dos anos 80, conquistando fama local como DJ, especialmente na rádio WJLB, com sets dinâmicos que misturavam techno, hip hop e house, sob o pseudônimo de The Wizard — alias que inclusive tem tudo a ver com a sua jornada, já que ele segue fazendo mágica até os dias atuais. Seu estilo já era uma prévia do que seria consolidado como a sua assinatura posteriormente: uma mistura intensa de sons, batidas rápidas e uma habilidade incomum de manipular vinis em alta velocidade. Jeff já estava profundamente imerso na cena musical de Detroit e paralelamente ao projeto solo, Mills foi parte de projetos importantes antes de fundar o Underground Resistance.

Em 1988, ele integrou o Final Cut, ao lado de Anthony Srock — um projeto que combinava elementos de techno e industrial, promovendo um som pesado e experimental. Eles lançaram o álbum Deep Into the Cut em 1989, que atraiu bastante atenção para o projeto, considerado bastante inovador. Posteriormente a dupla serviu como apoio também para o True Faith, com uma roupagem mais inclinada ao house com os vocais de Bridgett Grace. Embora esse último projeto tenha sido mais breve, ele já sinalizava o interesse de Mills em explorar diferentes vertentes do techno e da música eletrônica. Esses projetos iniciais também serviram como base para o seu desenvolvimento artístico, que ele levaria a novos patamares com o Underground Resistance, estabelecendo a reputação de Jeff como um visionário do techno global.

Em 1989, Mills co-fundou o Underground Resistance (UR) ao lado de “Mad” Mike Banks e Robert Hood. O coletivo não era apenas um projeto musical, mas uma verdadeira força de resistência cultural ao cenário sociopolítico de Detroit, com uma filosofia de combate às injustiças sociais através da música. O som cru e industrial do UR, influenciado pelo contexto socioeconômico de Detroit, se tornou uma das bases do techno e a sua mensagem revolucionária ressoou em comunidades ao redor do mundo, especialmente entre os jovens que encontravam na música uma forma de expressar seu descontentamento. Em 1991, Mills se afastou (sim, se afastou, porque ele nunca foi oficialmente “desligado”) do Underground Resistance para focar na sua carreira solo, mas sem perder o espírito inovador que o caracterizou desde o início.

Antes de contextualizarmos o avanço da jornada Mills a partir dos anos 90, é válido mencionarmos que ele manteve ao menos cinco aliases, 12 grupos/projetos com outros artistas e incontáveis variações do seu próprio nome ao lançar música. Dito isso, em 1992 ele fundou a Axis Records, uma gravadora que se tornaria um verdadeiro pilar para a expansão estética do techno. A Axis não só permitiu a Mills explorar a sua própria visão artística sem restrições, mas também se tornou uma plataforma para lançamentos que ajudaram a estabelecer as características centrais do próprio gênero. Dali em diante Jeff só ampliou a atmosfera das suas produções que eram sempre marcadas por um minimalismo rigoroso, onde cada elemento sonoro era cuidadosamente selecionado para criar uma experiência auditiva que é tanto hipnótica quanto emocionalmente envolvente — e afinal de contas, fazer muito com pouco por si só já é brilhante, mas Jeff foi muito além.

+++ Case | Axis Records

Se você quer mergulhar nos primeiros releases de Jeff Mills, esqueça qualquer plataforma de streaming como o Apple Music e o Spotify porque eles não vão te ajudar nessa tarefa. Seus primeiros releases são do mesmo ano de abertura da Axis, 92, mas um dos primeiros marcos da sua carreira solo foi a série de EPs lançados pela Tresor, intitulada Waveform Transmissions, que consolidou seu estilo característico: batidas rápidas, sintetizadores minimalistas e uma produção que evocava tanto a dureza da vida urbana quanto uma visão de futuro. Em 1994, o Waveform Transmission Vol. 3 foi particularmente importante, mostrando uma sonoridade crua e potente que rapidamente se tornou uma referência absoluta no gênero. Nessa época, Jeff já tinha mudado de Detroit para Nova Iorque, se baseando na sequência em Berlim, onde já mantinha a residência no Tresor

Em 1996, The Bells, uma das faixas mais importantes do techno (se não a mais) foi lançada pela Purpose Maker e é sem dúvidas o maior símbolo da sua carreira solo. Considerada um hino do techno, The Bells é um exemplo perfeito de como Mills conseguiu sintetizar elementos minimalistas em uma peça de música eletrônica que transcende o gênero e o tempo, se consolidando um clássico atemporal. A faixa é considerada um dos maiores clássicos do techno e uma obra que condensa o ritmo na sua mais pura essência. Com a sua linha de baixo pulsante e uma melodia repetitiva e minimalista, The Bells virou um hino global, tocado por DJs em todo o mundo e reconhecido instantaneamente por sua simplicidade e eficácia. No final das contas, a faixa não foi apenas uma marca registrada de Mills, mas um símbolo do poder do techno em transcender barreiras culturais e até emocionais.

+++ Iconic | Jeff Mills – The Bells [Purpose Maker]

Ao longo de sua carreira solo, Jeff Mills também lançou projetos ambiciosos como Sleeper Wakes, um álbum conceitual que explorou a relação entre a humanidade e a tecnologia. Esses trabalhos já destacavam o interesse do artista em narrativas complexas, mas também a sua habilidade de criar universos sonoros imersivos, o que só foi expandido ano após ano, com projetos cada vez mais distintos. Jeff seguiu desenvolvendo sua discografia, ao mesmo tempo em que se envolvia com incontáveis outros projetos e frentes não só da dance music, mas também da indústria musical de forma geral.

Outro grandíssimo ponto de destaque de Jeff Mills eram, claro, seus DJ sets, já que ele manipulava os vinis com uma agilidade literalmente bizarra, mas outra habilidade que foi muito precisa para o seu desponte como um verdadeiro titã também foram as suas performances ao vivo — aliás esse tópico da carreira de Mills daria um Storytelling por si só. É claro que o fato dele usar três ou quatro toca-discos simultaneamente, misturando faixas com uma habilidade técnica impressionante, fez dele uma figura lendária nos clubs e festivais ao redor do mundo, mas seus live acts eram especialmente conhecidos pela intensidade e pela habilidade de criar narrativas sonoras complexas em tempo real como ninguém.

Mas Jeff Mills e a sua mente brilhante jamais seriam limitadas ao estúdio e às cabines de DJ. Ele não só estabeleceu a estética originária do techno, mas expandiu os limites do gênero ao colaborar com orquestras sinfônicas, levando a música eletrônica a espaços tradicionalmente reservados para a música clássica. Uma de suas colaborações mais famosas foi com a Orquestra Filarmônica de Montpellier, ao reinterpretar suas próprias composições com uma orquestra completa. Este projeto mostrou que o techno não era apenas música para pistas de dança, mas uma forma de arte que podia dialogar com a tradição erudita, criando uma ponte entre mundos musicais que poderiam ser considerados até opostos.

Além das colaborações orquestrais, Mills também se aventurou no mundo do cinema, compondo trilhas sonoras para filmes como Metropolis de Fritz Lang. Ao criar uma nova trilha sonora para este clássico do cinema mudo, Mills trouxe uma nova dimensão à obra, combinando o futurismo do filme com a modernidade do techno nos anos 2000. Este trabalho é um exemplo claro de como Mills seguiu explorando novos territórios artísticos. Inclusive ele desenvolveu vários projetos audiovisuais e colaborou com artistas de diversas disciplinas, expandindo as fronteiras do que a música eletrônica poderia alcançar em uma época que ela ainda era muito marginalizada. Todos os projetos aos quais Mills se envolveu contribuíram como pouquíssimos para exemplificar a capacidade dinâmica do techno a novos ambientes, expandindo a audiência e reduzindo o preconceito com o gênero.

Apesar de todo o seu sucesso e influência, Jeff Mills às vezes é subestimado no cenário contemporâneo da música eletrônica. Em uma indústria que frequentemente busca a próxima grande novidade, é importante lembrar e reconhecer as contribuições de artistas como Mills, que não só ajudaram a moldar o gênero, mas continuam a expandir seus horizontes — além de ser uma verdadeira lenda viva que merece ser celebrada (e aproveitada) o máximo possível. Seu trabalho é uma prova de que o techno é mais do que apenas música de pista, mas também uma forma de arte capaz de expressar ideias complexas e criar experiências profundamente transformadoras em diversos campos da arte e porque não da ciência?

Atualmente Jeff Mills continua ativo, explorando novos projetos e colaborando com artistas de diversas disciplinas da arte e da música. Ele permanece uma figura central no techno, não apenas por suas contribuições passadas, mas por sua contínua inovação e dedicação ao gênero. O seu legado é uma parte essencial da história do próprio gênero, mas da música eletrônica como um todo e a sua influência será sentida por muitas gerações futuras. Em um mundo onde a música eletrônica é frequentemente vista como efêmera, Jeff Mills é uma prova viva de que a arte verdadeira é atemporal e eternamente relevante. Ring the bells!

Conecte-se com Jeff Mills: Instagram | Spotify 

A música conecta.

A MÚSICA CONECTA 2012 2024