Música “mainstream” versus “underground”: tá aí uma comparação que já rendeu as mais diversas pautas. A maioria, colocando esses dois campos como opostos e quase que inimigos — e é basicamente o que vamos questionar no editorial de hoje. Diante dos recentes acontecimentos no mundo da música, em que essa aproximação do Pop com a música de pista fica ainda mais evidente promovida por artistas como Beyoncé, Dua Lipa e Drake, uma reflexão sobre essa aproximação, pontuada por muitos veículos como “inédita”, torna-se mais do que necessária.
Antes de qualquer aprofundamento, o questionamento é válido: se o mainstream e o underground são apostos, como é que ao longo de tantos anos, essas esferas flertam o suficiente para considerarmos, de fato, um “casamento”? Que inclusive, caminha para as bodas de ouro — mas logo entramos nesse assunto. Outra pergunta que se faz presente então, é se esse relacionamento é tóxico ou saudável; ou seja, se é uma via de mão dupla. Sem grandes romantizações, apesar do título, é inegável que essa relação existe e é longa, mas no editorial de hoje, o foco é tirar essa roupagem de “inovação” através de um mergulho histórico nessa relação e tentar extrair, de alguma forma, a resposta para esse X da questão.
Bom, se estamos falando de um “casamento”, Giorgio Moroder seria o padre. O trabalho de Moroder, o pai da música sintética e profeta da “música do futuro”, foi de longe a figura mais importante no estabelecimento de um elo conectivo entre o Pop e a música de pista. Seja em seu trabalho como produtor solo ou em colaboração com artistas como Donna Summer e mais recentemente cantoras de Pop como Britney Spears, Kylie Minogue e Sia. Por isso, historicamente, essa relação começa a tomar corpo suficientemente para impactar a indústria musical conforme o trabalho de Moroder era desenvolvido e pode ser considerado o marco da ignição dessa relação.
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Quando Moroder sai do campo dos instrumentos orgânicos e parte para o dos sintetizadores, ele literalmente gera uma grande onda que impactaria massivamente todas as gerações musicais dali para frente. Um trabalho que até hoje é cultuado com unanimidade no mainstream e no underground, sem deixar uma dúvida quiçá — mas logo chegamos nesse ponto também.
Na sequência, uma figura imprescindível para que essa relação seguisse aflorando e se desenvolvendo foi Prince Rogers Nelson — músico, cantor, compositor, multi-instrumentista e produtor, que reunia na sua música um caldeirão de referências extraídas do Funk, Jazz, Hip Hop, Pop, R&B, Rock, Soul e, claro, Dance Music. Há quem diga que ele jamais seria o Prince sem o drum machine Linn LM-1, usando-o de uma maneira verdadeiramente única, o que o levou ao posto de influência do uso da máquina. Inclusive, em fóruns de fãs do artista, como o Prince.org, é possível encontrar diversas afirmações de que ele também foi um dos primeiros produtores que aderiram a drum machine.
Em Purple Rain, ela brilha em músicas como The Beautiful Ones e principalmente em… When Doves Cry ! Ele abre a faixa com um solo de guitarra e solta uma batida de LM-1 sob esse solo, deixando o loop pelo resto da música de quase seis minutos. Cassy e Tiga são dois produtores que já declararam abertamente a influência que o trabalho de Prince em Purple Rain teve em suas jornadas na música eletrônica e tenho certeza de que eles não são os únicos. Na verdade, o trabalho de Prince não só influenciou uma boa leva, mas também, assim como Moroder, fez com que a música eletrônica ocupasse lugares até o momento não ocupados.
Sem grandes necessidades de contextualizar conceitos entre mainstream e underground, mas enquanto o Pop brilhava nos holofotes da grande indústria musical amplamente guiado por gêneros e sub gêneros inerentes ao campo alternativo, a música de pista ganhava força principalmente pelas mãos de negros e da comunidade LGBTQIAP+, enquanto era marginalizada pela mesma indústria que nutria o Pop. E mesmo nesse período, elas nunca estiveram distantes. Embora esses estigmas sob a música alternativa estejam em um processo de desmistificação, o caminho ainda é longo e reparações precisam acontecer — papo para outro editorial…
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Alguns anos à frente e vemos a aproximação da rainha do Pop, Madonna, com a lendária Vogue em 1990, e 15 anos depois, o belíssimo trabalho com o álbum Confessions on a Dance Floor — Hung Up, faixa que abre o álbum, contém sample de ABBA e é simplesmente de arrepiar. Além de incontáveis outras cantoras Pop, como Kylie Minogue em Can’t Get You out of My Head; e mais alguns anos e ainda podemos trazer à tona os trabalhos de Lady Gaga em seu álbum de estreia, The Fame, e claro, Rihanna que em 2010 mostrou ao mundo suas habilidades em cantar sob bases inerentes à música eletrônica, como no álbum Loud.
Ou seja, estamos falando de uma dinâmica que caminha para quase 50 anos — é tempo viu? E agora, chegamos ao presente. Em 27 de março de 2020, Dua Lipa lançou o álbum que conduziria sua carreira ao êxito estratosférico: Future Nostalgia. O álbum entrega o puro creme do Pop e consagrou a jovem talentosa como uma das maiores estrelas globais da atualidade. Cinco meses depois do lançamento, como boa britânica que é, Dua lança a versão “Club” do álbum, com remixes de Jayda G, Masters at Work, Moodymann, Mr Fingers e The Blessed Madonna — que inclusive foi a responsável pela versão mixada do compilado, que você encontra abaixo.
Na sequência, trago pra “mesa” um dos trabalhos que mais me surpreenderam, até o momento, neste ano: Honestly, Nevermind, último álbum do Drake. Em 2017 o canadense já dava sinais de que estava de olho na música eletrônica alternativa ao reunir-se com Black Coffee e Jorja Smith em Get It Together, mas esse ano, ele elevou essa conexão a outro nível com o novo álbum e em 17 de junho, fomos todos pegos de surpresa pelo que o rapper revelou ao mundo. Após a conexão musical com o Black Coffee, Drizzy mergulhou de cabeça na música eletrônica alternativa, fez novas conexões — como DJ Carnage (Gordo) e… os rapazes geniais por trás da Keinemusik. Nós não sabíamos, mas nós precisávamos dessa união! Inclusive, se você olhar bem para a capa de Honestly, Nevermind você notará uma semelhança grande com o logo do selo berlinense.
Em 13 das 14 faixas do álbum, Drake parece modificar seu tom de voz para encaixar em sons que percorrem do Afro House ao Deep, Organic e Melodic. Um trabalho que vem com a assinatura cravada de cada produtor convidado e se você quer entender o que eu estou afirmando, o destaque vai para A Keeper (atmosfera chanceladíssima pela Keine), Calling My Name, Massive (produzida por Gordo e considerada o ápice do álbum) e Tie That Binds — que é simplesmente fantástica. Há quem diga que Drake se apressou para lançar esse álbum porque ficou sabendo do que a Queen B estava prestes a apresentar — verdade ou não, são álbuns com propostas, e principalmente, referências bem distintas.
Em 29 de julho, em RENAISSANCE, o sétimo álbum solo de Beyoncé parece encontrar um escape criativo, ou melhor, renascimento, através de um mergulho profundo na Dance Music pautada sob a perspectiva originária, ou seja, a negra e queer. A. G. Cook, Blood Pop e Honey Dijon são alguns dos produtores por trás do álbum, enquanto encontramos samples que vão de Teena Marie à Donna Summer, além de BEAM, Grace Jones e Tems ainda aparecem como vocalistas convidados. Com o sucesso de BREAK MY SOUL, o carro-chefe do álbum, não demorou muito para que os remixes também fossem lançados: Honey Dijon, Nita Aviance, Terry Hunter, will.i.am e… Madonna! Com samples de… Vogue!! Com RENAISSANCE, Beyoncé não só sacia as ânsias de uma leva de fãs, mas sustenta um legado injetando uma força simplesmente extraordinária.
Após essa breve recapitulação histórica dessa união, fica nítido que é um erro considerar essa dinâmica algo inédito e também, o quão dependente da música alternativa a música popular sempre foi, é e será. Não é exagero afirmar que sem o underground e sem referências desse nicho, o Pop e o mainstream perdem suas forças porque simplesmente passariam por um processo de “esvaziamento” de referências. Sem o underground, não existe o mainstream e mais do que nunca, somos capazes de observar o quão fundamental é essa nutrição. A pergunta que abre o texto, a essa altura, já está respondida: o underground entrega mais do que recebe — e isso já passou da hora de mudar. Agora a próxima pergunta a ser respondida são os possíveis mecanismos de mudança, mas fica para um próximo editorial. Enquanto isso, seguimos observando os incontáveis frutos que a Dance Music ainda há de render, bem como os lugares que há de ocupar.
A música conecta.