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A música conecta

Vitrola | O mundo sampleou o Brasil

Por Isabela Junqueira em Vitrola 31.07.2024

A música brasileira tem uma forma especial de tocar os ouvidos. Muito mais do que embalar ou ambientar, ela se infiltra na alma com uma mistura realmente singular de ritmos e melodias que deram corpo a obras musicais que são simplesmente inigualáveis — o que fez da nossa cultura uma fonte musical abundante. Não é à toa que, ao longo das décadas, artistas de todo o mundo têm se voltado para o vasto repertório do Brasil em busca de inspiração. Seja no jazz, no rock, no hip hop ou, claro, na música eletrônica, os sons do Brasil têm sido sampleados, reinterpretados e até mesmo plagiados. Embora nem sempre seja uma via de mão dupla, é inegável que essa dinâmica cria um diálogo musical que atravessa continentes, gêneros musicais, gerações e eras da música.

Os primeiros registros de fonogramas brasileiros datam do início do século passado, por volta de 1902. Do lundu em diante foram incontáveis os gêneros musicais precursores a qualquer movimento musical brasileiro que posteriormente foi internacionalizado, incluindo o samba, frevo, maracatu, forró, baião, xaxado e esses são literalmente alguns.

Inclusive não é a primeira vez que nos debruçamos sobre essa temática e muito provavelmente não será a última — acima você encontra uma playlist que reúne 30 clássicos absolutos da música brasileira que foram sampleados, reinterpretados ou plagiados. Mas hoje, a ideia é explorar essa rica história e influência entre incontáveis ritmos e movimentos musicais, mas dando uma atenção especial ao contexto e buscando entender quais ingredientes fizeram a música brasileira se tornar um ponto de referência global. 

A era da Bossa Nova e da MPB nos anos 60 e a internacionalização

Nos anos 40 e 50, o samba de Carmen Miranda abriu muitas portas, mas foi a Bossa Nova que emergiu no final dos anos 50, que trouxe um prestígio internacional muito grande, se transformando em um fenômeno amplamente globalizado. O movimento musical começou no Rio de Janeiro com uma estética que integra melodia, harmonia, ritmo e uma maneira mais intimista de cantar, geralmente sobre temas conectados ao cotidiano e sentimentos. Com a elegância minimalista de João Gilberto e as harmonias sofisticadas de Tom Jobim e Vinícius de Moraes, a bossa nova capturou a atenção, por exemplo, de músicos de jazz e pop nos Estados Unidos e na Europa.

A famosa colaboração entre Stan Getz e João Gilberto, que culminou no hit The Girl from Ipanema, é apenas um exemplo de como a Bossa Nova se tornou um embaixador musical do Brasil, influenciando artistas em todo o mundo. Para se ter noção de como a Bossa Nova impactou a cultura musical a níveis globais, basta escutar Maria Moita, composta por Carlos Lyra e interpretada por Nara Leão, lançada em 1964, e na sequência dar play em Smoke On The Water para entender de onde veio a influência do Deep Purple para “criar” um dos riffs de guitarra mais reconhecíveis de todos os tempos em 1972. Aliás, o rock foi um dos ritmos que mais bebeu e se beneficiou dessa abundante fonte de inspiração que foi e é a música brasileira.

A partir da metade da década de 60, uma segunda onda de músicos e compositores, ainda no Rio de Janeiro, começa a estabelecer uma ramificação da Bossa Nova: a Música Popular Brasileira (MPB). Refletindo a efervescência social e política da época, a MPB também ganhou força impulsionada por ícones como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Elis Regina, Chico Buarque e muitas outras figuras relevantes que exploravam temas sociais e políticos. 

Outro movimento musicalmente relevante que despontou ao fim dos anos 60 foi a Tropicália, que representou uma renovação no cenário musical brasileiro ao fundir gêneros como o baião, o pop e o rock psicodélico. Novamente artistas como Caetano Veloso, Gilberto Gil e Os Mutantes revolucionaram a música brasileira e também chamaram a atenção global. A Tropicália influenciou artistas internacionais ao introduzir novas sonoridades e uma abordagem experimental à música, com bandas como Talking Heads e Sonic Youth citando a Tropicália como uma influência direta. O movimento também ajudou a consolidar a imagem do Brasil, não só na música, como um celeiro de criatividade musical no cenário global. Ao mesmo tempo, o movimento do rock brasileiro começou a tomar forma com bandas como Os Mutantes e Raul Seixas, que ajudaram a popularizar o gênero no país, em paralelo a Jovem Guarda de Erasmo Carlos, Wanderléa e Roberto Carlos.

O caldeirão dos anos 70: samba, funk, disco!

Nos anos 1970, a cultura musical brasileira já era marcada por uma rica paleta de ritmos que refletiam a diversidade musical do país. O samba continuava sendo um dos pilares da música popular, com artistas como Cartola, Clara Nunes, Adoniran Barbosa, Paulinho da Viola, Beth Carvalho e Martinho da Vila se destacando. Mas outro gênero importante despontou no início dos anos 70: o samba-rock. Com Jorge Ben Jor sendo um dos principais expoentes, combinando samba com ritmos de rock e funk, Bedeu, Bebeto, o Trio Mocotó e o Clube do Balanço também foram grandes destaques desse nicho. Inclusive é importante mencionar que é no início da década, mais precisamente em 1972, que Jorge Ben Jor lança Taj Mahal, primeira faixa do álbum Ben e que foi descaradamente plagiada por Rod Stewart seis anos depois em um dos seus grandes hits Da Ya Think I’m Sexy — curiosamente (ou não) sabe-se que Rod viveu grandes carnavais no Brasil, ou seja: ele teve que admitir que de fato a fonte da sua inspiração veio da faixa de Jorge Ben.

Os sons internacionais também influenciavam os artistas da época, que por sua vez, absorviam muito bem ritmos como o soul e funk americanos. O próprio Ben Jor foi um deles, mas quem levou isso a outro nível foi o sempre incrível e inesquecível “Síndico do Brasil”, Tim Maia. Foi nos anos 70 que se deu a ascensão de um dos maiores ícones da música brasileira e especialmente os dois volumes de Racional, lançados entre 75 e 76,  vimos Tim alcançar um ponto particular de toda sua obra. Essa foi uma época em que as fronteiras musicais se tornaram mais porosas, e a música brasileira seguia se tornando uma presença cada vez mais constante internacionalmente e já não era incomum ouvir um groove brasileiro sendo reimaginado em faixas de soul ou mesmo de rock, demonstrando a versatilidade e o apelo universal dos nossos ritmos.

A ascensão do funk, soul e boogie no Brasil começou a ganhar força nos anos 1970 e 1980, exatamente quando os ritmos americanos começaram a se misturar de forma mais contundente com as tradições musicais brasileiras. O funk e o soul, com as melodias contagiantes e letras que falavam que traziam um senso de resistência e até de identidade, encontraram ressonância em um Brasil que vivia sob a ditadura militar e aderiam muito bem às novas formas de expressão cultural. Artistas como Tim Maia foram pioneiros em trazer o soul e o funk para o Brasil, adaptando esses gêneros à realidade brasileira e criando um som único que inspirou toda uma geração. Sua influência foi fundamental para a popularização desses gêneros, que rapidamente se tornaram parte do cenário musical brasileiro e uma referência absoluta para qualquer pesquisador musical atento.

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Já no final dos anos 70, a disco também encontrou um público cativo no Brasil, especialmente nas boates e bailes. Durante esse período entre o final da década de 70 e início da 80, a disco dominou as pistas de dança brasileiras, especialmente nas grandes capitais como Rio de Janeiro e São Paulo. Essa influência foi marcada pela criação de bandas e artistas que passaram a explorar o gênero em suas composições, adaptando o som para o público nacional. Grupos como As Frenéticas e Painel de Controle são exemplos de artistas que surfaram na onda da disco, trazendo uma versão brasileira do som que dominava o cenário internacional.

Além disso, o movimento das danceterias e das rádios voltadas para o público jovem ajudou a popularizar a disco cada vez mais no Brasil. As boates se tornaram pontos de encontro para aqueles que queriam dançar ao som de hits internacionais e suas versões brasileiras e essa fase também viu a emergência de DJs que começaram a ganhar destaque e influência, trazendo os novos sons para as pistas e ajudando a moldar a cultura clubber, o que também não foi diferente no país.

O sucesso da disco no Brasil foi tamanho que não se limitou apenas às pistas de dança. A televisão e o cinema também foram impactados, com trilhas sonoras de novelas e filmes incorporando a estética. A abertura musical da novela Dancin’ Days, da Rede Globo, por exemplo, é um marco da influência da disco music no Brasil. Com o tempo, a disco music foi se transformando e se misturando a outros gêneros, mas seu legado permaneceu. Ela abriu portas para a música eletrônica no Brasil e influenciou diretamente a criação de novos estilos, como o boogie e até o funk, que viriam a dominar a cena musical nas décadas seguintes. Apesar da Disco nacional não se refletir tanto no cenário internacional, é válido mencioná-la pelo enorme precedente que ela abre para movimentos relevantes subsequentes. 

A efervescência dos anos 80

O boogie, uma espécie de filho do funk e da disco, foi incorporado por DJs e músicos brasileiros, criando uma cena vibrante e influente ainda ao fim dos anos 70, mas que se popularizou de fato a partir dos anos 80, com o movimento Black Rio consolidando de vez a presença desses gêneros na cultura brasileira. Festas e os famosos bailes black no Rio de Janeiro e em São Paulo se tornaram epicentros de uma cultura que celebrava a negritude e a resistência através da música. Artistas como a Banda Black Rio, Cassiano, Marcos Valle, Lincoln Olivetti, Robson Jorge e muitos outros que também desempenharam papéis cruciais, explorando o potencial desses ritmos e criando uma música que era ao mesmo tempo brasileira e global. Esses gêneros deixaram um legado duradouro, influenciando a música brasileira contemporânea e ajudando a moldar a sonoridade de ritmos como o funk carioca e o hip hop nacional e internacional, que continuaram a evoluir nos anos que se seguiram.

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Foi também nos anos 80, que o mundo viu a ascensão e consolidação de ritmos como o hip hop, house, techno e electro, gêneros musicais que beberam direta e indiretamente da fonte brasileira. Electrifying Mojo, um dos mais importantes disc jockeys de Detroit, por exemplo, foi um dos primeiros a reconhecer o potencial dos ritmos brasileiros no contexto da música eletrônica emergente. A estética sintética e futurista dos anos 80 abriu espaço para uma nova interpretação dos ritmos brasileiros, especialmente através da ampliação da cultura do sampling, que agora se mesclava às batidas sintéticas e ambientes mais experimentais.

Aliás, se abordarmos o desenvolvimento do hip hop ao longo de três décadas e o quanto ele bebeu da fonte de ritmos brasileiros dá um editorial a parte, mas só a título de menção Dr. Dre, MF DOOM, Jay Z, Kanye West, Pusha T, Future e Tyler The Creator são só alguns. A relação estreita do hip hop com o sampling encontrou na música brasileira um tesouro de possibilidades. Essa prática continuou ao longo dos anos, com artistas de hip hop contemporâneo mantendo viva essa tradição de incorporar sons brasileiros em suas faixas. Ao mesmo tempo, o rap nacional começou a ganhar força, exportando seus próprios beats para o mundo.

O funk carioca e a nova geração de artistas

O funk carioca, com suas batidas cruas e sua energia frenética, conquistou o mundo na virada do milênio. O gênero, que nasceu como uma resposta das favelas do Rio de Janeiro ao Miami bass rapidamente ultrapassou as fronteiras brasileiras, influenciando DJs e produtores de música eletrônica em todo o planeta. Diplo, M.I.A. e outros artistas de renome foram rápidos em adotar o funk carioca em suas produções, levando o som das favelas para palcos globais.

Atualmente, observamos o funk carioca influenciando abundantemente os gêneros da dance music, desde o tech house até às roupagens mais aceleradas do techno. 

A música brasileira na era digital e contemporânea

Com a chegada da era digital, a música brasileira se tornou mais acessível do que nunca. O streaming e as plataformas online permitiram que artistas e produtores de qualquer lugar do mundo tivessem acesso a uma vasta gama de sons brasileiros, abrindo caminho para ainda mais inovações. 

Olhando para o futuro, é claro que a música brasileira continuará a desempenhar um papel crucial na evolução da música global já que uma nova geração de músicos e produtores seguem escavando, desenterrando e/ou revivendo jóias preciosas da música brasileira. Com a crescente influência das culturas locais na música global, a música brasileira está pronta para continuar nessa jornada de sucesso, inspirando artistas em todos os cantos do mundo.

Desde os acordes suaves da bossa nova até as batidas intensas do funk carioca, a música brasileira tem se mostrado uma fonte inesgotável de inspiração para o mundo. E à medida que a música continua a evoluir, podemos esperar que a influência da música brasileira permaneça forte, moldando o som das próximas gerações e provando que o mundo, de fato, sampleou o Brasil.

A música conecta.

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